irmãos

tudo claro mas tudo escuro
como numa prece
os dois sentados no meio-fio ao meio-dia
havíamos atravessado uma noite
plena de significados
tapetes dançando sob as mulheres
copos transbordando escorpiões
Cohen e Genet presentes
pai e mãe santos de quem éramos filhos
não havia mais nada
nem a música
era hora de levantar
nunca vamos crescer – ele disse
ele sempre falava a verdade
caminhamos pela alameda
em busca de mais um pouco de ar
ou do que fosse
éramos como sombra um do outro
e não desistiríamos
até que a luz do poente tocasse nossos pés
.........................................................
tempestade a caminho

ela tem o mapa da cidade
tatuado nas coxas
senta-se ao meu lado com uma força
que desconcerta
e pousa os antebraços sobre o balcão
quase sem gravidade
gosto de pensar que seu nome
é Cass
seus pés balançam encontrando os meus
dois breves toques

nunca nos falamos
mas ela atravessa as noites
ao meu lado
eu sinto o suor que desce
pelas nossas costas
ouço uma musica que inventei
quando fui jovem
são notas de um piano tocando o solo
deve ser tarde
é sempre tarde demais
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enquanto chove

não conseguia me concentrar naquilo
enfiar tudo na mochila
um par de calças meia dúzia de camisas
e todo o resto
o pior eram os livros
peguei só dois
entre eles o Faulkner
a coisa ficou mais difícil ainda
quando a criança entrou
sentou ao meu lado na beira da cama
e ficou olhando fixamente pra parede
não havia nada ali
só a parede
mas ela insistia
depois encostou a cabeça no meu braço
eu devia abraçá-la
ela sempre entendia tudo
a criança
empurrava a cabeça contra meu braço
depois tive que pedir pra vizinha
ficar um tanto com ela
até a mãe voltar
deixei as chaves no lugar das chaves
saí na chuva abraçado ao que restou
devia haver música
em algum lugar

de passagem

Deito sempre entre duas e três horas da madrugada.
É sempre o melhor momento. É quando a vida aparece.
É quando ela volta sozinha ao lugar onde nasceu.
Sonho com uma cidade indistinta até me tornar rua.
Tenho tanto de você em mim que acredito ser você.
Um acorde flutua, aperto o parapeito até converter-me
em música e execução. Vejo o asfalto num relance.

Assim mesmo, num relance.
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no alto, no canto

durante o tempo todo que ficou sem sair, lera, pelo menos, uma dezena de vezes os versos, os últimos versos do mesmo poema, algo sobre uma janela escura, que se fixara lá, no alto, no canto, enquanto ele mesmo procurava no alto, no canto, lá, uma outra luz, sem ao menos perguntar-se o que acontecera durante todo tempo que ali ficou. algo se quebrara? choveu? as flores abaixo da janela desistiram? as correspondências amontoaram-se na sala, no chão da sala? não, nada havia lá no alto no canto acima da porta da entrada, algo se quebrara, ali, no chão. ou então nem sequer fora um ser humano. talvez algo como uma folha deitada, uma página que vagueia lenta, levada pelo rumor ou pela corrente de ar que passa pelo vão, por baixo da porta. ela deve ter vindo com o alvoroço de uma outra madrugada, um vento devastador atravessando a varanda, a janela. folha agora disforme, quase não se lembra mais o que foi. é só uma folha que ascendeu, desceu e instalou-se ali, no chão, não mais lá, no alto, num canto, sob a luz do mundo
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uma certa claridade

o sonho ainda grudado nos olhos
nós tinhamos um código
quatro toques no telefone
pras emergências da madrugada
quando cheguei
tudo era pura lástima
o Marc pendurado na corda
sem deixar um bilhete
passei um pente fino
nem ampolas nem sacolas nem dinheiro
desci 5 lances de escada
o porteiro dormia sobre a correspondência
sonhava com fechaduras
lá fora o lixo na calçada
a única coisa que tem destino
esperei encostado na murada
as luzes do giroflex avisarem
a chegada do camburão
que levaria o corpo embora

coisas assim

sabia que seria uma longa noite
a mais fria
quando eu caí fora de casa
depois que ela entrou reclamando
dos cinzeiros cheios
a pia entupida
jogando as sacolas do supermercado
sobre a mesa da cozinha
onde eu escrevia
coisas que sem dúvida acabariam no lixo
coisas que eu teimava em lembrar
como a infância
uma febre alta
nada restou do lugar onde nasci
coisas assim
aproveitei a porta da rua ainda aberta
eu tinha tudo que precisava
o blusão de couro surrado
uns trocados pras bebidas
dois bolsos onde proteger as mãos
num deles
a carteira de cigarros
no outro
minha fotografia quando menino
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Eva

foi assim mesmo que ela apareceu
encostou o braço no batente da porta
nua
cruzou as pernas
fazendo ponta com um dos pés
à minha frente
sob os mil graus da água do chuveiro
num chão de azulejos escuros
ela foi o começo do meu dia
à tarde
sob o torpor da fumaça e do álcool
da noite anterior
fomos um fiasco ontem
ela disse e sorriu
eu daria meu último cigarro
se pudesse tocar outra vez aqueles lábios
mas isto já faz muito tempo
assim como tudo na vida
ela aparece vez ou outra na tv
e eu a vejo como se ela fosse aquela mesma menina
eu daria um dos meus olhos
para ver outra vez ela embalada dentro de seu sono
ou abrindo as portas da varanda
como um vento, logo de manhã
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não é o sono

ela me dá adeus com a mãozinha
por trás da passagem da porta
chamando
talvez nunca mais escreva
bilhetes, poemas
porque
a moradora do andar de baixo
reclamou dos gemidos e das paisagens
e pensar que quando vínhamos para casa
vimos dois trompetistas com dedos iluminados
lábios inchados de música,
uma puta na sua vida, lutando por sua vida
e os taxistas com copos de café nas mãos
à espera de bêbados

fotografia

ela andava de um lado para o outro
espalhando cinzas e fumaça
esperando o tal sujeito que a levaria
evitava olhar pra mim
evitando um desastre maior
eu olhava a fotografia
éramos quatro amigos numa tarde
bons tempos aqueles
mas todos desapareceram
ou haviam desistido
espalhados pelo mundo fincando novas raízes
ou simplesmente se escondendo
deles mesmos
levei o porta-retrato até a cozinha
e atirei na lixeira
enchi o copo e voltei pra poltrona
os destroços dela nos caixotes na entrada
três toques de buzina e a mudança começou
depois bateu a porta sem olhar pra trás
eu fiz um carinho no cão e esperei
o ronco do automóvel desaparecer na cidade
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o azul da tarde

nada mais faria diferença
a tarde dizia adeus à cidade
afastando-se do ouro
encostando-se num suave tom azulado
como que acompanhando
meus próprios passos
meio metro acima da calçada
para depois
suportar o peso do azul
absoluto
sobre a face da terra

nada mais faria diferença
depois da sala de cinema
a garota
com lábios e ancas e seios
mais belos do que toda a sua vida
com seu jeito de mover-se
dentro da própria exatidão
sem equilibrio
com seu jeito de amar e deter
um grito
dentro do próprio silêncio
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outra vez

eu e os olhos dela
atravessando a ponte
os dedos entrelaçados
balançando
por meia eternidade

eu e os lábios dela
orando
arruma tua cama
e agradece
quando voltarmos
pra casa
já que um dia teríamos uma
e nunca tivemos

eu a um passo dela
e esqueço que sei respirar
e esqueço quem somos
quem fomos e o que seremos
outra vez
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carbono 14

na época em que fomos modernos
um futuro tão claro e não víamos
juntar o açucar no chão
dar uma bola na chuva
e quando tínhamos nada
éramos capazes de tudo
você dizia, meu bem,
vamos voltar para casa
vamos olhar da janela
levar uma garrafa de vinho
os hotéis baratos lotados
um corpo como o seu
à espera de um quarto vazio
colchões e dinheiro emprestados
subir e descer oito andares
os Talking Heads tocando
e você dançava comigo

moça debruçada na janela

não precisei explicar nada
bastou ela me olhar
desde o instante da chegada
devo ter adormecido
entre as tintas pincéis potes
carvão e folhas de esboço
da lata de terebentina
e da garrafa de vinho tinto
até o chão da sala
parecia não fazer sentido
um artista como eu
levantando, enquanto ela dizia
toma um banho, se prepare

então
o mundo na mais perfeita ordem
ela debruçada na janela
olhando o mistério que passa
me falou sem se voltar:
vou pedir uma coisa
por favor, faça algo
não dá mais pra suportar
ver você
assim tão triste
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rumo à infância

ouvir o amanhecer
fazia tempo
quer dizer
perceber os pássaros
avisando que ele chega

ou pode ser que um fiapo
uma réstia
sobre o telhado
um zumbido no berço
fossem também o aviso

quer dizer
um assovio que voa
uma luz que rasteja
uma vida em seu ninho
anunciando

aurora

aonde você
está indo, Luísa, com essa cintilante arma
na mão?
considera as confissões sopradas sob o vão
da escada,
seu olhar ainda cochila sobre o meu colo

haverá lugar que nos acolha após o último
fracasso?
Ducasse também me feriu o peito
e me sugou
mas de tudo o que vi, nada se deteve
como sua face

deixa que eu traduza a sua mais nova
palavra
todo ser é incomparável, assim como
a poesia
faça de conta que a dor é também
bálsamo

quando o verdadeiro frio chegar, cobre
sua tez
com as mãos que eu lhe dei e pergunta
à sua mãe
se não houve entre nós um segundo
de felicidade
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kamikaze

Bóris e Judith em pé na ponta do balcão
bem perto da porta
vieram se despedir
partem pra Paris
todos estavam indo embora daquela cidade suja
biquei da bebida deles até o Bóris dizer
quer que eu pague uma dose?
não respondi
enfiei a mão no bolso
e saquei a mais triste poesia
desde o final da última grande guerra
uns papéis amassados
o Bóris alisou a poesia e coçou a barba
depois de ler
suspirou e pagou a conta
eles foram embora arrumar as malas
fui sentar no fundo do bar
de onde podia ver a entrada
e a chegada das patrulhas
eu via tudo ventando lá fora
folhas papéis vidas a própria noite
e por um instante pensei
no último voo do kamikaze
da poesia que o Bóris havia lido
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clandestinos

então fomos pro front pela última vez
seguindo o mapa do centro da cidade
o ponto fechado como uma barricada
olhamos para o céu e aguardamos
varados pela noite um casal se despede na praça
pelo menos devem ter para onde ir
numa cidade cruel como aquela
quando o dia vem é quase um alívio
resistir? pegar as armas? ela pergunta
num piscar o cerco se completa
só fizemos erguer os braços e deitar na calçada
em certas circunstâncias é melhor desistir
para manter o pouco de coragem que nos resta

quando cantávamos


encosta seu mundo interior
a este outro: o dos dias
já não é suficiente viver
transpira através da lágrima
e colhe com a língua
o sal dos seus lábios
e estende um olhar para Vênus


encosta seu templo interior
a este outro: o da próxima vida
embriague-se novamente
e sempre
de abandono
você é ainda o dono da luz
e na meia-noite
recolha-se à calçada
seu último santuário
e se desejar encontre
sobre todas as coisas
sua adorada canção

vá, sorria
como você mesmo fazia
quando cantávamos
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alzheimer

novamente o dia entre os dedos
como mãos enfiadas num rio
eu já soube o que viveu lá dentro
fui eu mesma que te ensinei
tudo muito bem guardado
era eu que visitava a casa
do outro lado da ponte
quando o céu se enchia de lua

foi ali que te concebi
nas entranhas da saudade
doeu um mundo inteiro
como quando as louças caíram
toda uma dinastia partiu
com elas foram o chá e as tardes
e uma multidão de impressões
e no fundo do quintal
o cão escondido da chuva
o sol morrendo de velho
como os discos 78 cantando
o ar negro em rotação
fui eu que ensinei a elas
e uma delas me contou
que uma vez subiu para o sótão
e lá descobriu a ternura

meu vestido trazia a floresta
fui eu que te segurei no colo
um pouco antes do susto
eu te apertei em meus seios
teus ossos machucavam meus ossos
e misturada à pele
minha roupa de tão surrada
se desfazia no ar

o filho do jóquei

acompanhe a nossa história
não há derrota, não há truques
só você consegue entender
olhe para os meus braços
os punhos da camisa dobrados
não há nada nestas mãos
o chicote e as botas no canto
essa é a minha vida
tão parecida com a sua
ainda trago as marcas
e como você mesmo sabe
escondidas embaixo da pele

parecem os mesmos sinais
parecem os mesmos motivos
e é tão fácil escapar
basta virar as costas
basta trancar-se lá dentro
basta viajar de navio
atravessar as montanhas
olhar por cima do muro
e para safar-se do medo
esquecer da última queda
apostar que a vida dá certo
jogar o resto num pulo

prepare-se, meu velho
por hoje o tempo é escasso
ainda um cheiro de alfafa
cocheira, cenoura
e açúcar em cubos
aqui no alto a vida está calma
no fundo, eu sei, você está bem
só mais um pouco de fôlego
parece até brincadeira
agora foi dada a largada
depois do último páreo
podemos voltar a nos ver
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um ano depois

agora tenho certeza
era você mesmo rodando
entre sinais crucifixos e anjos
um ano depois
passando em frente ao portão
ao lado das barracas de flores
se acovardando
que não encontraria a alameda
e que não valia a pena voltar
a sentir
um claro desespero
mas foi até lá mesmo assim
e tudo voltou
como um afogado à superfície
um ano depois
não havia nada para perdoar

um ano antes
olhando para os poucos amigos
que olhavam para baixo
enternecidos
agora tenho certeza
era você mesmo escapando
como um diabo foge
algo revirando lá dentro
entre o coração e a garganta
e a infância voltando
como um golpe de chicote
no tempo em que a guerra
começava dentro de casa
para depois ganhar as ruas
você lembra muito bem
.........................................................
até aqui, tudo bem

parece que foi há pouco
o começo de tudo
no prédio do centro da cidade
distribuindo provas do jornal
na sala dos revisores
com o agente da censura a postos
ao lado da minha mesa
30 minutos de descanso
no final da tarde
não sem antes contemplar
o ascensorista
passeando os dedos na fita
perfurada pelos antigos computadores
não sem antes abrir o envelope
e descobrir que ela me deixara
bem no meio das suas férias
através de uma carta
a ferida rasgando
como a ponta de uma baioneta
eu descia até o Mutamba
sentava ao lado do Professor
saboreando sua papaya
Pernambuco picava as frutas
dentro do balcão
e preparava meu lanche
perto do fim do mundo
a carta inundava tudo
o prato o copo o viaduto
eu voltava pelo elevador
o mesmo ascensorista e sua leitura
não sem antes o vendedor de bilhetes
da loteria
enterrar seus pesados olhos
em mim
assim como eu
pouco antes
lendo e relendo a notícia
do falso suícidio
nas dependências da polícia
parece mesmo que foi há pouco
quase agora
que aquilo tudo começou

vida tranquila

eu estava preso ao trabalho
seria melhor me livrar
jogando tudo pro alto
como uma chuva ao contrário
como se não houvessem danos
tanto tempo enfiado
num lugar falsamente iluminado
apenas exibição e vazio
como um lutador de boxe
erguendo os braços e saltando
num rinque de patinação
seria melhor me equilibrar
sobre duas lâminas afiadas
e esculpir poesias no gelo
ou subir num ônibus
e deixar a cidade rodar
com ela mesma engolindo ruas
e nomeando-as novamente
seria melhor imaginar
homens caminhando
como um cavalo-marinho
no fundo de um aquário
falsamente iluminado
apenas exibição e vazio
e ao descer do ônibus
um incêndio atrás de cada esquina
uma mulher a cada esquina
a me perguntar: é feio sentir saudades?
e atravessar o saguão do hotel
para descobrir como seria depois da queda
a saltar degraus acima
adivinhando que viriam novos rounds
.........................................................
22 de abril de 1985

podia bem ser uma canção
qualquer uma
mas era o som ideal, o som inaudível
do universo
latejando entre as orelhas
e se eu pudesse
certamente pensaria sobre isto
que escrever poesia é como dobrar esquinas
numa manhã em que o silêncio sobrevoa
numa manhã em que uma sombra avisa
que não há morte
que poetas apenas mudam de lugar
que salvadores apenas mudam
de lugar
podia bem ser uma canção
cortando lares lojas bares bancos
enclausurados
uma canção que nos aproxima demais
do absoluto
e que vem como uma força que nos traz
pra dentro
uma toada que nos laça e golpeia
em plena avenida
e que cambaleia como um marujo
em plena avenida
e diz que poetas e salvadores nos empurram
pra vida
e que seria somente ilusão o avião levando
o pequeno corpo
e um pedaço de cada um de nós
por cima de tudo
.................................................
um pouco de paz

em torno da mesma mesa
depois de meses sem trocar palavra
coisa que envolvia uma só mulher
em nossos corações alterados
percebi que ainda éramos
os mesmos velhos amigos
de uma época em que escrevíamos
cartas com caneta-tinteiro
tempos com bares enfumaçados
e foi quando ele começou:
- nada melhor para selar a paz
do que umas boas doses de gim -
e não tocamos no assunto
ficamos entornando comédias
evaporando mágoas
e fazendo planos para um futuro
que nunca viria
dizendo que a vida era suja
e que odiávamos higienismo
proibições catequese palavras de ordem
e bom-mocismo
depois fomos embora
cada um na sua
como sempre acontece na noite
eu tenho comigo
que os amigos podem tudo
até mesmo morrer
foi ela quem me contou
aquela mesma mulher entre nós
me disse ao vivo
em torno de uma outra mesa
trinta anos depois
que ele ficara quieto e pesado
um pouco antes de ir
um cara que levitava
quando acendia um charuto
vivendo sem aquele sorriso
sem aquele jeito de quem desperta
apenas com um olhar
o desatento garçom
e com um aceno encomenda
mais uma dose de gim

jazz

balanço o molho de chaves na mão esquerda
ao descer a rua em direção ao acaso
e penso na sorte
e nos garotos que travam no asfalto
rompendo vidros de automóveis de luxo
tudo já era assim mesmo naquele tempo
e olho para a garota nua que dança
em frente à janela do apartamento
lançando sua sombra na calçada
continuo descendo até chegar ao bar sem luminoso
a porta fechada guarda um silêncio envelhecido
dou três batidas na madeira com os nós dos dedos
e Bernard me recebe
um belga alto sem sorrisos e sem palavras
encontro todos reunidos em uma mesa para oito
pessoas como eu naquela altura
deveriam se contentar com o isolamento
mas os amigos me convidam
minha ex-mulher e seu novo companheiro
dois outros casais duas garrafas de vinho e os copos
parecem felizes
menos eu que abraço a todos desequilibrado
conversamos sobre as perdas eu e a ex-mulher
seu novo companheiro diz algo que já desapareceu
eu também digo algo que não lembro
ele enfia o punho na minha mandíbula
os dois caem fora enquanto recolho o resto dos óculos
depois sento novamente e preencho o copo
o velho Bóris me olha com resignação
“você mereceu”, ele diz
então vou até o balcão e o Bernard me perdoa
e crava no toca-discos um tesouro do Coltrane
.........................................................
mais jazz

não é vergonha alguma
ser sentimental demais
eu gosto de você assim
olhando lá fora
para esse lugar que sempre foge
de nós
eu gosto de repetir
que a melhor das paisagens
é você
debruçada sobre a tarde
que já foi embora

não é uma lembrança
é um presságio
não é uma ausência
é uma prece

que mal pode fazer
a nós dois
ouvir outra vez
a mesma música?
não é um lamento
é uma descoberta
não é só mais um dia
que retorna
são todos os dias
amontoados
num mesmo momento
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ponte dos arcos

devo ser o mesmo homem
aquele que carrega dentro de si
o que restou dos amigos
que já partiram
devo ser um passageiro em Granada
na tarde em que todos os poetas desapareceram
da face do mundo
devo ser o que se perde
mas não naufraga
num mar de avenidas
devo ser aquele que escapa
de si mesmo
e que nunca mais volta pra casa
devo ser alguém
que não lembra da última noite
e dos cantores sob a luz do poste
calados
devo ser um deles
com um cigarro apagado
sentado nas pedras
olhando o mar do Caribe
devo ser o velho do barco
aquele que sempre voltou
devo ser ele
aquele mesmo menino
que monta um potro selvagem
e aposta corrida com o vento
e que atravessa os dias
levitando
sobre a ponte dos arcos
e brinca de guerrilheiro
na outra margem do rio
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cidade desaparecida

o tempo passa a percorrer o sentido inverso
- não, não estamos retornando -
continuamos como sempre
como uma velha tribo rodeando a fogueira
entoando nossa história

lembre-se que fomos também os seres
com os quais crescemos

agora tudo o que vemos são edifícios ocos
depois serão somente fósseis desencavados
e todos iremos embora mais cedo do que pensamos
antes do último sol cair
tudo o que cantamos desaparecerá no meio do tráfego

prendo seus cabelos de ouro em meus dedos de memória
é tarde demais
o céu toca a relva
o parque costura a borda da cidade
que desaparece dentro dos nossos olhos